quarta-feira, 4 de junho de 2014

A VIDA EM SACOLAS

10 sacolas. Era tudo que Antonio tinha. 10 sacolas plásticas, mas não como essas frágeis sacolas brancas que dão no supermercado. Eram fortes, pois levavam toda uma vida. Eram negras, como piche do asfalto que repelia a vida e os passos de Antonio. Eram inteiras, pois não podiam deixar vazar tudo que Antonio tinha por buracos, por rasgos flácidos. Viviam umas dentro das outras. As 10 frágeis sustentavam o peso de outras 10 que vinham por dentro conservando com nós trançados com o cuidado de quem teme, devaneia e carrega o medo da violência nas esquinas dos olhos.

Eram 10. De longe parecia que eram mais. Multiplicavam-se com os passos largos e as buzinas. Um amontoado de coisa alguma para os olhares alheios, mas para os seus era tudo o que tinha. Era também sua trincheira. Seu mundo. Do qual ele nem ousava levantar os olhos. Sabia que poderia enxergar seu reflexo no outro. Uma vez refletido, ele existiria e insistiria em tirar sua paz, sua simplicidade – naquela noite, fria e voraz.

Sacolas empoeiradas pela ação vento e do tempo. Mas pelo tempo que faz dentro de Antonio do que faz além de sua trincheira negra, no ponto de ônibus da Consolação com a Paulista. Eram 10 os dedos que as carregavam com um esforço desastrado, trocando os passos com chinelos surrados e maiores que seus pés. Arrastava-se ao tentar levar tudo que tinha. Mas tudo que tinha o empurrava com brutalidade para a sarjeta.

Plásticas eram as embalagens que envolviam e livravam Antônio da loucura que o torna um conceito feio e desconexo na cidade que não para, mas atropela. Negras, como a noite que o ignora, o faz invisível.

Livros, algumas peças de roupas, sabonetes e uma toalha. Era tudo que tinha dentro das sacolas. Dentro de si, levava um sorriso abstrato pela falta de alguns dentes, mas isso era o de menos, perto da sua humildade. As 10 sacolas não seriam suficientes para carregá-la. Mas o coração deu conta do recado e tratou de levar também sua bondade e generosidade para com os companheiros andantes, que sempre aliviam o peso de suas sacolas e oferecem uma quentinha para encher o vazio da fome.

10 sacolas plásticas e 1 Antonio. 1 equação errada na ordem natural da vida. 1 retrato profundo e delicado para quem pode/sabe enxergar essas sutilezas que fazem de essepê uma Babel cheia de linhas tênues.